sábado, 31 de janeiro de 2009

'A cidade ilhada' de Milton Hatoum

Escritor amazonense de maior projeção no cenário mundial da atualidade, ganhador de alguns dos mais importantes prêmios da literatura em língua portuguesa, Milton Hatoum voltará em breve aos estandes de lançamentos das livrarias com "A cidade ilhada". A obra será a primeira coletânea de contos do autor, que tem na bagagem quatro romances, entre eles "Relato de um certo Oriente", com o qual estreou na cena literária brasileira em 1990.

"A cidade ilhada", a sair após o Carnaval pela Cia. das Letras, com fotografia de capa de Luiz Braga, reúne 14 narrativas curtas de Hatoum, escritas de 1990 aos dias atuais. Seis delas são inéditas; outras oito, publicadas anteriormente em jornais e revistas literárias, foram reescritas especialmente para o novo livro, algumas de forma tão drástica que ganharam até novos títulos – caso de "Natureza ri da cultura", nova versão de um conto publicado originalmente na "Revista da USP" como "Reflexão sobre uma viagem sem fim".

"Natureza ri da cultura" é o conto mais antigo da seleção. O mais recente se intitula "Dançarinos da última noite", e foi publicado anteriormente na extinta revista "Entrelivros". Em algum ponto entre os dois escritos estão, entre outros, "Varandas da Eva", "Uma carta de Bancroft", "Bárbara no inverno" e "Encontros na península" – este definido por Hatoum como um "conto machadiano", cheio de referências à obra de Machado de Assis.

As cidades amazônicas são o cenário comum a todos os romances de Hatoum. Seus contos, por sua vez, são ambientados em diversos lugares do mundo, entre eles Rio de Janeiro, Bombaim, Berkeley e Palo Alto (ambas na Califórnia), Paris. "Mas o ponto de partida ou de chegada é Manaus", destaca o escritor.

Além do já citado "Relato de um certo Oriente", Milton Hatoum é autor de "Dois irmãos" (2000), "Cinzas do Norte" (2005) e "Órfãos do Eldorado" (2007). Pelas três primeiras obras ele recebeu o prêmio Jabuti, mais importante premiação literária brasileira. Foi ganhador ainda dos prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Bravo! e Portugal Telecom.

Ainda este ano, o escritor espera lançar um livro de crônicas, que incluirá textos publicados em jornais como "O Estado de S. Paulo" e "A Crítica".

Confira abaixo a íntegra de uma entrevista concedida pelo escritor ao jornal "A Crítica" em sua residência em Manaus, no último dia 23. Nela ele fala, entre outros assuntos , sobre "A cidade ilhada", sobre a publicação "tardia" de uma coletânea de contos, sobre seu processo de criação, sobre seus autores prediletos e sobre suas preocupações com o que ocorre no mundo e no Brasil.

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Você estará lançando em breve um livro de contos chamado "A cidade ilhada", é isso?
É na verdade uma coletânea de 14 contos. Oito deles já tinham sido publicados, alguns no Brasil, outros no exterior, e outros seis são inéditos. Mas, mesmo os já publicados foram reescritos, e posso considerar inéditos. Até o título de alguns eu mudei.

Qual o intervalo entre mais antigo e o mais recente?
O primeiro é de 1990, é um conto chamado "Reflexão sobre uma viagem sem fim", que foi publicado na "Revista da USP" e em várias antologias no exterior, na Alemanha, nos Estados Unidos, na França. Depois, o título mudou para "Viagem sem fim" e agora, neste livro, o título é "Natureza ri da cultura". Já o último se chama "Dançarinos da última noite", que foi originalmente publicado como uma crônica na revista "Entrelivros", mas achei que podia transformar num conto, então reescrevi e incluí no livro. E tem um muito recente, totalmente inédito, foi lido num simpósio internacional sobre Machado de Assis no Masp, em agosto. Fui convidado a fazer uma saudação ao Machado, e em vez de fazer algo solene, fiz um conto machadiano, com referências a ele, que se chama "Encontros na península".

Por que você achou necessário reescrever alguns contos?
Quando eu reli os que já haviam sido publicados – e por isso não releio romances –, achei que podia melhorá-los, dar mais concisão, mais cor.

O título "A cidade ilhada" é uma referência metafórica a Manaus, ou apenas o nome de um dos contos?
Tem um conto chamado "A casa ilhada", então o título não é o nome de um dos contos. Pode ser Manaus, pode ser a vida dos personagens, ou na verdade qualquer cidade. Mas a primeira cidade que vem à memória dos leitores é Manaus. Que ainda é, geograficamente, uma cidade ilhada por rios, florestas. E péssimas estradas.

Há uma linha comum ou fio condutor entre os textos?
Os contos, de alguma forma, dialogam com os romances, todos os quatro. Há alguns personagens dos livros que aparecem nos contos, ou às vezes há uma afinidade espacial, temática. Mas tentei trabalhar com a ideia do conto moderno, que não opera com uma surpresa final, como era o conto do século 19. O conto moderno, do século 20, narra duas histórias paralelas e, no fim, revela o significado oculto de uma das duas histórias. Você começa contando uma coisa que não é aquilo que você quer narrar, como se houvesse uma história narrada que é retrabalhada numa outra história, que é a que você quer trabalhar.

É também uma forma de surpresa para o leitor.
Sim, porque nesse processo de histórias paralelas se revela uma coisa importante.

E as histórias falam sobre o quê?
A editora que escreveu a orelha do livro falou que os narradores são viajantes. As histórias se passam no Rio de Janeiro, Paris, Palo Alto e Berkeley, na Califórnia, Bombaim, mas o ponto de partida ou de chegada é Manaus. Há um espaço mais ou menos difuso dos contos, eles não acontecem inteiramente no Amazonas, talvez dois ou três sim, mas os outros são narrativas "viajantes", que apontam para outros lugares, outras cidades, outras situações e realidades fora de Manaus. Quando reescrevi, tentei adensar essas narrativas, e o segredo é esse. O Tchekov dizia que quando você escreve um conto, tem de reler, suprimir o começo e o fim e deixar o miolo. Ele tem de manter a tensão e a atenção, tem de tensionar o tempo todo os personagens, as situações e conflitos.

Não sei se digo algo errado, mas o conto parece ser o caminho mais natural do desenvolvimento de um escritor. Foi diferente com você, que escreveu quatro romances antes de publicar este primeiro livro de contos. Como foi sua trajetória, nesse sentido?
Fui na contramão da carreira da maioria dos escritores, que começam publicando contos. Comecei, também, publicando contos, nos anos 70, mas não publiquei. Ainda bem, porque eram imprestáveis. Depois achei que tinha assunto e escrevi "Relato de um certo oriente". Curiosamente, abandonei a idéia de um livro de contos. Eles foram saindo, mas mais a pedido de jornais. Escrevi dois para o "Caderno 2" do "Estadão", outro para uma revista francesa, que saiu numa coletânea pela Gallimard. De fato, eu não tinha como objetivo sentar e escrever um livro de contos, eles foram acontecendo, sem nenhuma periodicidade.

Também me parece que desde o lançamento do "Relato", o tempo entre os lançamentos de seus livros vem diminuindo. Você vem se dedicando mais a escrever, é isso?
Estou amadurecendo, eu acho! (risos) Mas se for ver, o livro de contos já está na maioridade, tem mais de 18 anos. Mas não estou mais rápido, não acredito nisso. O "Órfãos do Eldorado" escrevi em dois anos porque tinha assinado um contrato para terminar, fui pressionado para concluir. Tinha de entregar, consegui visualizar o livro e me dediquei integralmente a ele. Como não é também uma ficção muito longa, tem cem páginas, pude me concentrar e ir até o fim.

Em termos de tempo, escrever contos sem dúvida é mais fácil, mas dá para comparar a dificuldade entre escrever um conto ou um romance?
São gêneros muito diferentes. O romance pede muitas digressões, um texto extenso, e um desdobramento de conflitos e personagens que são inadequados ao conto, exatamente por este ser uma forma concisa. Ele é breve, trabalha a tensão e o significado. O Julio Cortázar tem uma bela definição: ele diz que o conto é uma fotografia, e o romance, um filme. O conto, ele fala, é como uma pequena esfera perfeita, que encerra um significado e uma tensão permanentes. Acho que um dos grandes mestres do conto foi o Machado, que foi o primeiro contista que li na juventude, numa coleção que até ainda está na minha casa. É de 1957, o famoso "Clássicos Jackson", de capa dura, hoje se encontra em qualquer sebo por uma bagatela, mas era uma coisa linda na época. A fonte era em tamanho grande, dava prazer de se ler.

Além de Machado e Cortázar, que outros escritores você considera fundamentais no gênero conto?
Maupassant foi um mestre no conto. Edgar Allan Poe, que criou o conto policial. O Jorge Luis Borges é um contista excepcional, porque inovou a narrativa breve na América Latina. Guimarães Rosa tem contos extraordinários. A Katherine Mansfield é outra mestra. Joyce escreveu "Os dublinenses", que para mim é uma das obras fundamentais dele. O Tchekov tem contos geniais, quem quer escrever contos tem de ler o Tchekov, o Machado, os clássicos do século 19.

Quando você está no processo de escrever um conto, essa herança de todos os que vieram antes fica pairando na sua mente?
Às vezes até mais que isso, eles entram na minha cabeça mesmo. Por exemplo, o conto machadiano "Encontros na península", tem inclusive referências aos contos de Machado. O conto é uma indagação sobre a qual conto de Machado o meu está se referindo. É um conto dentro de um conto – não gosto de chamar de "intertextualidade", pois vão me chamar de esnobe, e eu não gosto disso, então pode tirar esse "palavrão", ou jargão da teoria literária.

Além dos contistas, que outros autores estão nos seus livros de cabeceira? E também, da nova geração, quem você destaca?
Dos estrangeiros, descobri um narrador muito bom, que já morreu há mais de 60 anos, Sándor Marai, húngaro, que tem um romance chamado "As brasas". Só agora ele está sendo traduzido no Brasil.Gosto muito também de um autor alemão chamado W. Sebald, li dois romances dele, são meio proustianos, falam da memória, "Os imigrantes" e "Austerlitz".
Acho também que finalmente o Brasil descobriu e traduziu um autor de que sempre gostei, Roberto Bolaños, que considero o autor latino-americano mais importante da minha geração. Li quase tudo dele. Tem um livro de contos chamado "Putas assassinas" que é maravilhoso. Ele morreu jovem, foi um expatriado, deixou o Chile para morar no México, depois foi morar na Europa. Seus personagens vivem em trânsito, são sempre poetas, muitas vezes não-realizados, e o sentimento de exílio, de expatriação, é muito forte na obra dele.
Também há os autores portugueses, como o Gonçalo Tavares, até escrevi uma orelha de um livro dele que saiu agora.

E dentre os brasileiros?
Dos mais jovens, gosto muito do Bernardo Carvalho. Li recentemente também o romance de uma moça bem jovem, "A chave de casa", de Tatiana Levy. E gostei. Mas não consigo acompanhar muita coisa, na verdade.

Como é sua rotina de trabalho como escritor? Você tem o que se chama "inspiração"?
Tenho primeiro de cumprir minhas obrigações de escrever crônicas para o Terra Magazine e para o "Caderno 2" do "Estado de São Paulo". Com inspiração ou não, tenho de fazer. Mas é curioso: um conto surge como uma febre, você não sabe quando vem, que tipo de infecção é. Surge a ideia, e você tem de escrever. Ele é incondicional, não pode ser adiado. Se você tem uma ideia delineada, tem de tentar. Talvez nem seja nada, talvez seja uma crônica, ou só uma ideia, e literatura não se faz de ideias. O conto é o que o Manuel Bandeira chamava de "alumbramento", um belo nome que ele dava para a inspiração. A inspiração, acho, é uma outra forma de dizer "desejo de escrever". Quando você tem desejo de escrever, está inspirado. Quando empaca muito, é melhor fazer outra coisa, e esperar que surja esse "alumbramento".

Como você lida com a tecnologia – o boom de informações, a Internet, geladeiras que falam?...
Sou um péssimo internauta, trabalho para portais, mas não sou um navegador – é assim que se diz? – compulsivo. Mas em situações que merecem uma análise da realidade mais profunda e menos parcial, vou à Internet. Por exemplo, quando o assunto é o Oriente Médio, quero ler o "Le Monde Diplómatique", pois lá sei que não vão chamar os palestinos de terroristas. Sei que muitos intelectuais acreditam que existe terrorismo de Estado, que é mais nocivo e devastador. Se eu quiser saber mais de política americana, não vou ler o "Washington Post", vou ler o "The Nation".

E sobre os escândalos da política nacional? Pode-se confiar nos jornais de forma geral?
Isso está em todos os jornais. Mas a grande mídia, penso, não gosta do Lula, porém ele tem uma aceitação tão grande que não sei se está preocupado com isso. Para o Amazonas, ele tem sido um presidente no mínimo atencioso – dos últimos, ele foi mais. Ele conhece o Amazonas, conhece o Acre, as mulheres catadoras de babaçu no Maranhão. Mas há tantos escândalos que a gente não se impressiona mais. O triste, para mim, não é a política nacional, é ver o banqueiro Daniel Dantas ser solto pelo presidente do Supremo. Isso é que é escandaloso. Enquanto o Judiciário não for uma instituição democrática, enquanto favorecer a posição de classe, não podemos dizer que estamos numa democracia.

O que mais preocupa você na atualidade, seja literária ou pessoalmente?
O que eu faço é tão modesto, não tenho muita pretensão. O que o escritor mais quer? Ganhei todos esses prêmios – Jabuti, Portugal Telecom, Associação Paulista dos Críticos de Arte, Bravo! –, mas o que mais me interessa é ter bons leitores. Se possível muitos, pois me ajuda a viver. Mas meus livros são bem traduzidos. O "Cinzas do Norte" acaba de ter uma repercussão maravilhosa na Alemanha, na Inglaterra teve críticas maravilhosas, que vão aparecer até na quarta capa da edição de "A cidade ilhada".
O que o escritor mais quer é ter leitores. A qualidade do leitor é que interessa para a sobrevida do livro. O leitor de livros de auto-ajuda não me interessa. A auto-ajuda é uma praga dos nossos tempos. Há várias: os programas de TV, de modo geral, são tristes, deixam muito a desejar. E no jornalismo, de modo geral, a literatura ocupa um espaço muito exíguo. Nem posso reclamar, pois os professores trabalham muito com meus livros, do Rio Grande do Sul ao Amazonas, sempre estão nos vestibulares.
O que me preocupa é a qualidade da educação pública. Há um esforço para melhorá-la, mas a situação é tão dramática que será necessário muito tempo para corrigir isso. É impressionante como os jovens perderam a capacidade crítica, a intimidade com a linguagem, com a gramática, com a sintaxe, com a própria língua portuguesa.

Há uma conexão entre as duas coisas, não?
Claro, pois se você escreve e fala mal, também pensa de forma deficiente. A linguagem escrita é uma expressão de seu pensamento. Se você fala mal, escreve mal, está condenado a ser uma pessoa limitada. E isso é um círculo vicioso e terrível, pois os professores ganham mal, não têm tempo para se dedicar às suas aulas, a maioria dos alunos não têm condições de se manter na escola, vive uma vida miserável.
Acho que só informatizar as escolas não resolve, você tem de qualificar os professores, exigir deles qualidade de ensino, e pagar bem, pois de outra forma eles não são motivados. Esse acho que é um dos impasses do Brasil: a educação pública que foi totalmente desestruturada durante a ditadura. Foi um dos grandes crimes do regime militar.

Só para concluir, ao lado do novo livro prestes a sair, você está com outros projetos em mente?
Sim, quero publicar um livro de crônicas este ano ainda. Aí acaba a história de dez, cinco anos entre um livro e outro! (risos) Ou então minha trajetória foi mesmo na contramão. A ideia é selecionar crônicas da "Entrelivros", do "Caderno 2", uma ou outra do jornal "A Crítica", e outras esparsas que publiquei em coletâneas e outras revistas. Sairia diretamente em livro de bolso, pela Companhia de Bolso (selo da Companhia das Letras). Não quero nem que saia em brochura normal, mas que saia barato logo.

4 comentários:

Unknown disse...

Parabéns, Jony, belíssima "exclusiva". Só não entendi uma coisa: as explicações para a escolha do título, a tal da "cidade ilhada". O MH quer, saindo de Manaus, ir de carro pra onde?

Anônimo disse...

Há um comentário acerca deste livro e outras considerações em meu blog em http://rf-nunes.zip.net/. Ainda não li o livro (nem comprei ainda, para ser mais exata...), mas os demais e anteriores do Milton, e suas concepções teóricas, literárias e político-literárias, para mim, são bastante pertinentes.

Unknown disse...

Acabo de ler "A cidade ilhada", e realmente gostei, é incrível a forma de escrita de Milton, ele nunca te entrega o drama, você vai lendo até o finalzinho e encontra um sentido surpreendente para o conto.
Gostei da matéria, parabéns.

Anônimo disse...

Meu nome é Tassia e estou escrevendo meu projeto de Iniciação Científica sobre Milton Hatoum, com foco em Cinzas do Norte e A Cidade lhada. Gostaria de saber se você tem a referência da entrevista, pois pensei em utilizá-la. Entrei no site do jornal A Crítica, mas não encontrei o arquivo...
Muito obrigada pela atenção! Meu e-mail é tassiak@gmail.com
Abraços,

Tassia