sexta-feira, 25 de abril de 2008
Ça Irá - Um pouco mais do mesmo
Realmente tenho orgulho de morar em uma cidade que abriga um evento como esse. Conheço até algumas pessoas mais ignorantes e preconceituosas que dizem que Manaus não deveria abrigar um Festival de Ópera, pois não combina com essa cidade - pura visão esteriotipada. Gosto muito de ópera e criei essa cultura ainda na infância, vendo os desenhos do Mickey e Donald; isso consolidou-se mais tarde, na pré-adolescência, quando minha mãe levou-me à minha primeira ópera. Ainda lembro até hoje, era La Boème, acho que no II FAO. Resumindo, acredito que um festival como esse ajuda sim a criar uma cultura de música clássica na cidade.
Agora voltemos a Ça Irá e à minha não-predileção por especificamente esta obra de Waters. Mas antes de tudo, não posso deixar de falar de como foi difícil para mim ter acesso à segunda récita do espetáculo no TA. Tudo começou na redação de A Crítica, quando a assessoria de imprensa do evento enviou um e-mail à nossa editora pedindo para cadastrar as pessoas da equipe nos espetáculos. Eu prontamente me cadastrei para a segunda récita de Ça Irá, posto que as estréias são marcadas por muitos confetes e falação, que acabam por tirar o foco da coisa E lá fui eu, depois de um dia corrido de trabalho, fechando tudo às pressas para poder chegar no horário, junto com os colegas de labuta Jony Clay Borges, Thiago Hermido e Renata Paula, da TV Cultura.
Qual não foi minha surpresa quando o assessor de imprensa do Festival olhou para nós na porta do Teatro e nos disse que não havia lugar para a imprensa e que o credenciamento feito não era válido. “Foi um erro de uma das pessoas que trabalham para mim”, disse, sem cerimônias. E continuou: “Não vou deixar de vender ingressos para acomodar vocês”. A partir daí fui levada pela minha indignação à discutir com o assessor, que saiu e disse que ia ver o que poderia fazer por nós, como quem presta um favor. Nessa hora senti vergonha pelo Festival e dirigi-me a meu colegas, fazendo menção de ir embora. Porém eles não deixaram. Quando o tal assessor retornou, abriu o cordão da entrada e disse “Entrem e procurem algum lugar vazio. Vão ocupando as frisas, mas se o dono da frisa chegar vocês saem”. E assim aconteceu por duas vezes até conseguirmos ocupar a terceira frisa no canto direito do palco, obviamente na parte de trás da frisa, com três colunas entre mim e Ça Irá. Ia ficar em um lugar pior, mas meu gentil colega Jony Clay me cedeu sua cadeira.
Adversidades à parte, consegui assistir Ça Irá e juro que os comentários a seguir nada têm a ver com os contratempos relatados anteriormente. No primeiro ato achei a ópera sem história, sem trama, não prendia mesmo. Querer contar a história da Revolução Francesa por meio de um circo é até interessante, mas aquela figura do Mestre de Picadeiro, com cartola e fraque, e o excesso de participação do coro roubavam a ação das personagens e deixava a ópera meio enfadonha. Eu sei que todo mundo já disse isso, mas parecia mesmo um musical. O que aconteceu é que os personagens não tinham voz.
Além disso, as vozes masculinas ficaram muitas vezes encobertas e sem expressividade, excluindo (como o Jony disse) Geilson Santos, que interpretou bem o papel de um escravo revolucionário das colônias francesas e o Leonardo Pace, como Luís XVI.
No segundo ato, a tônica foi ficando mais inteligível. O rei e a rainha que pareciam figurantes, finalmente tiveram parte na trama. O momento mais emocionante, a meu ver, foi quando a rainha Marie Antoniette, interpretada por Gabriela Pace é levada à morte, conduzida pelos bailarinos do Corpo de Dança do Amazonas. A cena é perfeita em tudo: canto, cênica, iluminação, figurino, cenografia... Porém, tenho que concordar com o Jony também que não consigo me recordar de nenhum pedacinho de ária dessa ópera. Nada fica “nem para assobio”. Por outro lado, aplaudi e gritei “bravo!” para a produção, a cenografia, a iluminação e o figurino, dignos de uma grande montagem.
De Ça Irá, acredito que fica a audácia de um roqueiro clássico em passear pelo mundo da música erudita, mesmo sabendo que estava sujeito a belos tropeções. Mas, de qualquer forma, prefiro lembrar de Roger Waters atingindo a perfeição como o baixista de uma das maiores e melhores bandas de rock do mundo.
quarta-feira, 16 de abril de 2008
"Ça Ira" - espetacular

Acredito – e isso não deve ser uma opinião isolada – que quando você idealiza um trabalho que pode ser taxado de obra de arte, devem constar em seus planos oníricos primeiros a possibilidade deste ser apresentado ou mesmo reproduzido com toda a fidelidade necessária para lhe manter único exatamente como você um dia o fez. Em contrapartida, vê-lo travestido de algo que nunca foi ou será pode render grande frustrações. Por isso, ao chegar em casa após ter visto a surpreendente “Ça Ira”, entendo o porquê de todo o perfeccionismo de Roger Waters – ninguém menos que seu compositor. Para não perder de vista o perfume dessa inspiração, acordei os vizinhos hoje com "Time" – outra obra de arte de Waters.
Paralelo às turnês solo, uma rotina para o inglês após ter deixado o Pink Floyd (lembra dele naquela época?), Waters passou 16 anos compondo "Ça Ira" (cuja tradução significa “Há Esperança”) baseado no libreto de Etienne Roda-Gil, um compositor francês. A ópera aborda a Revolução Francesa em três atos – coisa de aproximadamente duas horas e pouquinho.
Então quase duas décadas de trabalho depois, "Ça Ira" estreou na Polônia (terra da Wyborowa, para bom entendedor meia palavra basta) em 2005, sendo regida de um jeito totalmente diverso ao que Roger Waters previa. Fico tentando imaginar a cara dele... não deve ter sido agradável. Para evitar novo transtorno, quando convidado para participar do 12º Festival Amazonas de Ópera com sua montagem, o ex-Pink Floyd fez questão de vir até aqui para acompanhar os ensaios o máximo que pode.
Ele veio duas vezes. Na primeira, não falou com a imprensa nem sob decreto, sem pena de nos deixar tostando à toa do lado de fora do Teatro Amazonas. Na segunda, houve coletiva, ensaio aberto, fotos, entrevistas rápidas. Bem rápidas mesmo: estávamos todo nós, jornalistas de cultura de Manaus (eu representando o Jornal A Crítica), sentados nos banquinhos do saguão do Teatro esperando que Waters respondesse a todos os questionamentos que tínhamos pensado anteriormente. Ele pegou o microfone, deu “bom dia” em português. Disse o quão feliz e ansioso estava para a estréia de "Ça Ira" – com razão, era a primeira vez que a ópera estrearia não só em Manaus, como também no Brasil. Disso podemos estufar o peito e afirmar que saímos na frente do sudeste... Enfim, ele também contou que havia muitos ensaios pela frente, pediu licença, levantou-se e já sem o microfone avisou que tinha "trabalho a fazer". Alguém gritou do meio da multidão de fotógrafos e repórteres se para um roqueiro de renome como Waters era difícil transitar entre a ópera e o rock. Ele se limitou a dizer que "a dificuldade é a mesma". Não sei, acho que o "Dark Side Of The Moon" não demorou 16 anos para ser composto, mas se ele fala...
Foi muito ensaio, minha gente. Coisa de mais de 10 horas diárias. Por isso, a expectativa para ver a ópera no palco era grandiosa demais da minha parte, pelo menos. Só não imaginava que Waters estaria triplamente nervoso. Quando finalmente sentei na platéia ontem, Robério Braga (Secretário de Cultura do Estado) apareceu no palco para proferir breves palavras e anunciar a presença de Roger Waters, que entrou segurando seu já conhecido microfone e um pedaço de papel.
"Boa noite", ele disse. O papel em suas mãos denunciava o quão trêmulo Waters estava. Com toda a dificuldade de quem praticamente decorou palavras em português por consideração à platéia, ele agradeceu imensamente a honra de apresentar sua obra naquele suntuoso teatro – que para quem não sabe, é considerado o 3º mais belo do mundo (sudeste, morre de inveja de novo!). Foi algo admirável de se ver. Estamos acostumados à arrogância de artistas menos capacitados que quando uma lenda viva do rock vem à capital amazonense agradecer com toda sua humildade – e em português, imagina o quanto deve ser difícil – quase não acreditamos.
Quando sob o comando do maestro Luiz Fernando Malheiro a orquestra começou a tocar, eu já me sentia plena, sentimento que perdurou do início ao fim. Tem gente que vai dizer que "Ça Ira" é uma ópera medíocre por não exigir esforços herculanos dos músicos envolvidos, mas eu discordo totalmente. É aquela coisa que todo "metaleiro new be" (como diria meu amigo Omar Gusmão) repete: metal bom é aquele com feeling e não com alta dificuldade técnica. E se transitar por ópera e rock é algo que Roger Waters tira de letra, citar um exemplo calcado no metal não pode ser considerada grande heresia da minha parte.
"Ça Ira" é totalmente cantada por vozes poderosas e impecáveis que podem passar longe de amplificadores com tranqüilidade. As "falas" são em inglês e foram traduzidas com legendas que eram projetadas no canto superior da cortina. Não creio que muita gente tenha conseguido ler e acho até que ninguém deve ter feito muita questão, porque ópera é algo para se sentir. Todas as emoções conseguem ser repassadas pela música, pela expressão no rosto dos cantores, pelo cenário. Foi algo tão carnal que era possível ver lágrimas nos olhos de um tenor que confortava Maria Antonieta em seu leito de morte... na única vez em que olhei pro lado, verifiquei que as lágrimas não estavam somente nos olhos dele, na verdade.
Não me cabe descrever o final de "Ça Ira" porque o texto é um convite para que todos apreciem a obra do gênio (gênio e não me canso de elogiar!) Roger Waters, que embarcou nessa madrugada de volta para a Inglaterra. Feliz e pleno, como todos nós que vimos a ópera e o aplaudimos de pé quando ao fim de tudo, ele voltou ao palco do Teatro que o recebeu tão bem para agradecer ao público.
"Há esperança" para gênios e boa música nesse amálgama de coisa ruim que a gente vê surgindo no mundo fonográfico a cada dia que passa...