Acredito – e isso não deve ser uma opinião isolada – que quando você idealiza um trabalho que pode ser taxado de obra de arte, devem constar em seus planos oníricos primeiros a possibilidade deste ser apresentado ou mesmo reproduzido com toda a fidelidade necessária para lhe manter único exatamente como você um dia o fez. Em contrapartida, vê-lo travestido de algo que nunca foi ou será pode render grande frustrações. Por isso, ao chegar em casa após ter visto a surpreendente “Ça Ira”, entendo o porquê de todo o perfeccionismo de Roger Waters – ninguém menos que seu compositor. Para não perder de vista o perfume dessa inspiração, acordei os vizinhos hoje com "Time" – outra obra de arte de Waters.
Paralelo às turnês solo, uma rotina para o inglês após ter deixado o Pink Floyd (lembra dele naquela época?), Waters passou 16 anos compondo "Ça Ira" (cuja tradução significa “Há Esperança”) baseado no libreto de Etienne Roda-Gil, um compositor francês. A ópera aborda a Revolução Francesa em três atos – coisa de aproximadamente duas horas e pouquinho.
Então quase duas décadas de trabalho depois, "Ça Ira" estreou na Polônia (terra da Wyborowa, para bom entendedor meia palavra basta) em 2005, sendo regida de um jeito totalmente diverso ao que Roger Waters previa. Fico tentando imaginar a cara dele... não deve ter sido agradável. Para evitar novo transtorno, quando convidado para participar do 12º Festival Amazonas de Ópera com sua montagem, o ex-Pink Floyd fez questão de vir até aqui para acompanhar os ensaios o máximo que pode.
Ele veio duas vezes. Na primeira, não falou com a imprensa nem sob decreto, sem pena de nos deixar tostando à toa do lado de fora do Teatro Amazonas. Na segunda, houve coletiva, ensaio aberto, fotos, entrevistas rápidas. Bem rápidas mesmo: estávamos todo nós, jornalistas de cultura de Manaus (eu representando o Jornal A Crítica), sentados nos banquinhos do saguão do Teatro esperando que Waters respondesse a todos os questionamentos que tínhamos pensado anteriormente. Ele pegou o microfone, deu “bom dia” em português. Disse o quão feliz e ansioso estava para a estréia de "Ça Ira" – com razão, era a primeira vez que a ópera estrearia não só em Manaus, como também no Brasil. Disso podemos estufar o peito e afirmar que saímos na frente do sudeste... Enfim, ele também contou que havia muitos ensaios pela frente, pediu licença, levantou-se e já sem o microfone avisou que tinha "trabalho a fazer". Alguém gritou do meio da multidão de fotógrafos e repórteres se para um roqueiro de renome como Waters era difícil transitar entre a ópera e o rock. Ele se limitou a dizer que "a dificuldade é a mesma". Não sei, acho que o "Dark Side Of The Moon" não demorou 16 anos para ser composto, mas se ele fala...
Foi muito ensaio, minha gente. Coisa de mais de 10 horas diárias. Por isso, a expectativa para ver a ópera no palco era grandiosa demais da minha parte, pelo menos. Só não imaginava que Waters estaria triplamente nervoso. Quando finalmente sentei na platéia ontem, Robério Braga (Secretário de Cultura do Estado) apareceu no palco para proferir breves palavras e anunciar a presença de Roger Waters, que entrou segurando seu já conhecido microfone e um pedaço de papel.
"Boa noite", ele disse. O papel em suas mãos denunciava o quão trêmulo Waters estava. Com toda a dificuldade de quem praticamente decorou palavras em português por consideração à platéia, ele agradeceu imensamente a honra de apresentar sua obra naquele suntuoso teatro – que para quem não sabe, é considerado o 3º mais belo do mundo (sudeste, morre de inveja de novo!). Foi algo admirável de se ver. Estamos acostumados à arrogância de artistas menos capacitados que quando uma lenda viva do rock vem à capital amazonense agradecer com toda sua humildade – e em português, imagina o quanto deve ser difícil – quase não acreditamos.
Quando sob o comando do maestro Luiz Fernando Malheiro a orquestra começou a tocar, eu já me sentia plena, sentimento que perdurou do início ao fim. Tem gente que vai dizer que "Ça Ira" é uma ópera medíocre por não exigir esforços herculanos dos músicos envolvidos, mas eu discordo totalmente. É aquela coisa que todo "metaleiro new be" (como diria meu amigo Omar Gusmão) repete: metal bom é aquele com feeling e não com alta dificuldade técnica. E se transitar por ópera e rock é algo que Roger Waters tira de letra, citar um exemplo calcado no metal não pode ser considerada grande heresia da minha parte.
"Ça Ira" é totalmente cantada por vozes poderosas e impecáveis que podem passar longe de amplificadores com tranqüilidade. As "falas" são em inglês e foram traduzidas com legendas que eram projetadas no canto superior da cortina. Não creio que muita gente tenha conseguido ler e acho até que ninguém deve ter feito muita questão, porque ópera é algo para se sentir. Todas as emoções conseguem ser repassadas pela música, pela expressão no rosto dos cantores, pelo cenário. Foi algo tão carnal que era possível ver lágrimas nos olhos de um tenor que confortava Maria Antonieta em seu leito de morte... na única vez em que olhei pro lado, verifiquei que as lágrimas não estavam somente nos olhos dele, na verdade.
Não me cabe descrever o final de "Ça Ira" porque o texto é um convite para que todos apreciem a obra do gênio (gênio e não me canso de elogiar!) Roger Waters, que embarcou nessa madrugada de volta para a Inglaterra. Feliz e pleno, como todos nós que vimos a ópera e o aplaudimos de pé quando ao fim de tudo, ele voltou ao palco do Teatro que o recebeu tão bem para agradecer ao público.
"Há esperança" para gênios e boa música nesse amálgama de coisa ruim que a gente vê surgindo no mundo fonográfico a cada dia que passa...
Um comentário:
Oi Camelo!!!
Adorei a forma como você conduziu o texto. O ouvido, os olhos e a emoção pendurados em um fino fio ligado ao coração. Emoção e arte mergulhando ao mesmo tempo "para não perder de vista o perfume desta inspiração"...As horas passam marcando os momentos que se vão...Acho que o Roger Waters veio à sua terra natal para lhe mostrar o caminho certo para você alcançar o sol. Beijinho
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